Hildegarda de Bingen foi uma freira e, posteriormente, abadessa católica, da Ordem dos Beneditinos, nascida em 1098. O título de religiosa é pequeno para uma mulher que, em plena época da 2ª Cruzada (1147-1149) e da Inquisição, com ousadia e muita capacidade, produziu uma obra imensa, que abrange diversas áreas do conhecimento. Além de freira e, posteriormente, abadessa de um convento criado por ela, foi cientista, teóloga, pregadora, filósofa, linguista, pintora, compositora, poeta, dramaturga e médica (ou algo próximo dessa função). Nasceu em Bermersheim, na Alemanha, e faleceu em 1179, aos 81 anos, em Ruppertsberg, próximo a Bingen. Era oriunda de família nobre, sendo seu pai cavaleiro a serviço do conde Meginhard de Spanheim. Aos oito anos foi confiada aos cuidados de Jutta, irmã do conde Meginhard, que era abadessa de um convento beneditino para homens e mulheres em Disibodenberg. Desde cedo, por volta dos seis anos de idade, Hildegarda começou a ter visões espiritualistas, que continuaram pelo resto de sua vida. Na fase adulta, recebeu instrução desses seres espirituais para que escrevesse tudo o que lhe estava sendo revelado, o que resultou no livro Scivias. Quando Jutta morreu, Hildegarda contava com 38 anos de idade e foi indicada para assumir a posição de abadessa. No entanto, usando de inteligência e diplomacia, não aceitou a indicação e pediu que fosse realizada uma votação, da qual foi vencedora. Posteriormente, conseguiu criar um convento exclusivo para mulheres. Hildegarda tornou-se muito conhecida pelo seu trabalho como terapeuta, médica, conselheira espiritual e profetiza, a tal ponto que muitos a procuravam para solucionar problemas (JÜRGENSMEIER, 1979 apud MOULINIER, 2003)2.
Hildegarda foi uma das primeiras pessoas a quem o procedimento oficial de canonização foi aplicado. Houve quatro tentativas de canonização antes da que de fato formalizou esse processo, em 10 de maio 2012, obtido pelo Bento XVI, a quem também devemos o título de doutora da Igreja, concedido a Hildegarda. A partir daí, ela integra o quadro das quatro mulheres doutoras da Igreja, ao lado de Catarina de Siena, Teresa de Ávila e Teresa de Lisieux (Teresinha do Menino Jesus, em português). A última tentativa de canonização de Hildegarda havia sido a do Papa Inocêncio IV, em 1244. No entanto, mesmo sem ter o estatuto oficial de santa, era objeto de devoção de longa data, porque seu nome constava no martirólogo romano do final do século XVI, com o título de santa. Comemora-se sua festa em 17 de setembro, dia de sua morte. Algumas de suas biografias dão conta de que, no momento de sua morte, várias pessoas em Rupertsberg teriam visto dois arcos cruzando-se no céu e, em seu ponto de intersecção, haveria uma cruz luminosa. As relíquias de Hildegarda mantêm-se até hoje na igreja paroquial de Eibingen, perto de Rüdesheim, no Reno.
2. Obras de Hildegarda de Bingen
Hildegarda de Bingen produziu as seguintes obras escritas, que passamos a mencionar por temas: i) hagiografia: Vita Sancti Disibodi (“Vida de São Disibodo”), Vita Sancti Ruperti (“Vida de São Ruperto”); ii) trabalhos exegéticos: Solutiones triginta octo quaestionum (“Decomposições de trinta e oito questões”), Explanatio Regulae Sancti Benedicti (“Interpretação da Regra de São Bento”), Explanatio Symboli Sancti Athanasii (“Interpretação do Símbolo de Santo Atanásio”), Expositiones Evangeliorum (“Explicações dos Evangelhos”); iii) obras teológicas e místicas: Scivias (abreviação de Scito vias Domini “Conheça os caminhos do Senhor”), Liber Vitae Meritorum “Os Livros dos Méritos da Vida”, Liber Divinorum Operum Simplicis Hominis “Livro das Obras Divinas do Homem Simples”; (iv) medicina: Physica “Física” e Causae et curae “Causas e curas”; (v) música e poesia: Symphonia Harmoniae Caelestium Revelationum “Sinfonia da Harmonia das Revelações Celestes” (77 peças), Ordo Virtutum “A Ordem das Virtudes” (auto sacro musicado); (vi) linguística: Lingua Ignota “Língua Desconhecida”; (vii) epistolografia: Litterae “Cartas”.
O único livro de Hildegarda de Bingen traduzido para o português foi Scivias, editado pela editora Paulus, em 2015, a partir da língua inglesa (publicação norte- americana de 1990). Entre os assuntos de suas visões estão temas como a caridade de Cristo, a natureza do universo, o reino de Deus, a queda do ser humano, a santificação e o fim do mundo. Esse livro é principalmente especial para historiadoras e teólogas feministas, pois elucida a vida das mulheres medievais e é um exemplo impressionante, de certa maneira, da espiritualidade cristã. As suas visões são explicadas uma por uma alegoricamente: primeiramente a visão, seguida da sua explicação e dos significados teológico e espiritual. O livro contém igualmente mandalas e iluminuras desenhadas por Hildegarda.
Hildegarda representou alegoricamente o homem, os seres angelicais, a composição da natureza e do universo tal como os concebia. Repare-se a semelhança do desenho abaixo, que descreve uma de suas visões presentes no Liber Divinorum Operum (“Livro das Obras Divinas”), com a famosa pintura “O Homem de Vitrúvio”, de Leonardo da Vinci.
Cadernos de Tradução, Porto Alegre, Número Especial, 2019.
Figuras 1 e 2: Liber Divinorum Operum
Fonte: Wikipédia3
O reconhecimento pelo trabalho de Hildegarda está presente em vários artistas contemporâneos, de diversas áreas. Sem citar exaustivamente todas as obras de arte, por exemplo, na literatura, Umberto Eco fez vários personagens de O Nome da Rosa (1981) citarem Hildegarda de Bingen como santa. Kim Stanley Robinson mencionou Hildegarda como a criadora do termo viriditas em Red Mars, uma trilogia de ficção científica sobre a colonização de outros planetas. Na música, em 2001, o grupo sueco Garmarna lançou um álbum intitulado Hildegard Von Bingen. Em 2006, Hildegarda foi tema de música – Hildegarde de Bingen – no álbum Galileo, de Claire Pelletier. Em 2008, sua vida foi retratada no filme franco-alemão Vision, dirigido por Margarethe Von Trotta. No campo da psicologia, Carl Jung também se inspirou no trabalho de Hildegarda. Avis Clendenen, no livro Experiencing Hildegard: jungian perspectives, mostrou a vinculação de Jung a Hildegarda acerca da natureza das doenças e de suas curas. A chamada medicina monástica (klosterheilkunde) está sendo cada vez mais reconhecida e aceita pela medicina moderna. Em 2012, um grupo de cientistas, liderados por Dr. Uehleke4, em faculdades de medicina em Berlim e Zurique, realizou um estudo para validar a autenticidade da medicina monástica, utilizando Hildegarda como base. A equipe analisou quatrocentos e trinta e sete empregos feitos por Hildegarda sobre cento 3 Liber Divinorum Operum (1165) Cópia do XIII século. Wikipédia. Disponível em:
<https://fr.wikipedia.org/wiki/Hildegarde_de_Bingen#/media/File:Hildegard_von_Bingen_Liber_Divinorum_O
perum.jpg>. Acesso em: 21 set. 2018. “O Homem de Vitrúvio”. Wikipédia. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Homem_vitruviano#/media/File:Da_Vinci_Vitruve_Luc_Viatour.jpg>.Acesso
em: 21 set. 2018.
4 Uehleke B, et al. Are the Correct Herbal Claims by Hildegard von Bingen Only Lucky Strikes? A New
Statistical Approach. Alemanha: Forsch Komplementmed, 2012;19:187–190.
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e setenta e cinco plantas. Trinta recomendações feitas por ela estavam corretas e ainda
são utilizadas em tratamentos.
3. Physica
O livro Physica foi escrito entre 1150 e 1158 e compõe-se de nove livros (Libri Novem), cuja sequência é esta: De Plantis, De Elementis, De Arboribus, De Lapidibus, De Piscibus, De Avibus, De Animalibus, De Reptilibus, De Metallibus (“Plantas”, “ Elementos”, “Árvores”, “Pedras”, “Peixes”, “Aves”, “Animais”, “Répteis”, “Metais”). Como se deduz pelo próprio conteúdo do livro Physica, a palavra física nada tem a ver com o significado que a ela atribuímos hoje em dia. Physica, em latim, provém do grego clássico φυσική (‘ciências naturais’ substantivação do adjetivo φυσικός “natural”), mantendo o mesmo significado da língua grega. É difícil percorrer todo o trajeto histórico do termo “física” como medicina ou algo semelhante a esta. Sabe-se, entretanto, que houve um livro intitulado Physiologus, sobre medicina, de autor desconhecido, escrito no século II no Egito e que foi traduzido para o latim por volta do ano 700.
Physica preserva-se em cinco manuscritos e quatro fragmentos: dois manuscritos escritos no século XIII – um em Wolfenbuttel5 e outro em Florença; um manuscrito escrito no final do século XIV ou início do século XV em Roma; dois manuscritos escritos no século XV – um em Paris e outro em Bruxelas; e quatro fragmentos – os de Berna, Berlim, Friburgo e Augsburgo (ADAMSON, 1995). Adotamos o texto latino da obra Physica a partir da edição de J. P. Migne (1882), que se baseia na edição de J. Schott de 1533, publicada Estrasburgo.
Em Physica são descritas quase 300 plantas, 61 tipos de aves e animais voadores e 41 tipos de mamíferos. A obra é considerada por alguns estudiosos como uma verdadeira enciclopédia (BOUDÈS, 2016). As apresentações são destinadas a um propósito terapêutico, e Hildegarda indica os remédios que podem ser obtidos de cada planta ou órgão animal. Esse livro pertence mais à história da medicina popular do que à história das ciências naturais. Hildegarda usa tudo o que a natureza poderia oferecer em termos de tratamentos: os “simples” (de medicina simplicis, como era chamada a medicina através de plantas na Idade Média).
Atribui-se a esse livro o estatuto de ter sido o primeiro livro de ciências naturais do Sacro Império Romano-Germânico e de ter sido a base para o estudo da Botânica durante toda a Baixa Idade Média na Europa (sécs. XI ao XV) até o século XVI. A literatura consultada sobre Physica é unânime em declarar que o livro serviu como um manual prático de cura popular e de medicina monástica. Embora o conteúdo das informações apresentadas por Hildegarda seja oriundo de compilações de livros a que teve acesso (MOULINIER, 1995), vê-se que muito deriva do conhecimento prático que ela adquiriu no mosteiro. De fato, é dos mosteiros que provém a medicina empregada na Idade Média (ALMEIDA, 2009). Em Physica, Hildegarda descreve as substâncias médicas naturais disponíveis naquele tempo. Além da descrição dos elementos da natureza e de 5 O manuscrito de Wolfenbuttel, de 1200, é o mais antigo de todo; encontra-se na Biblioteca Herzog-August,
Cod. Guelf. 56, 2. Aug. 4°f 1-174 v.
Cadernos de Tradução, Porto Alegre, Número Especial, 2019. sua aplicabilidade para a prevenção e cura de doenças tanto físicas quanto mentais e espirituais, a obra parece ser um manual geral sobre a utilidade e o valor das substâncias mais comuns e abundantes na Criação, que são plantas, animais e minerais. Entretanto, é no livro Causae et Curae que Hildegarda versa, especificamente, sobre as doenças e os remédios para curá-las. Ela se refere aos medicamentos como naturalia (as coisas naturais), termo já empregado por Celso, médico romano do século I. Celso, por exemplo, orientava que para curar um derrame ocular, não há melhor remédio do que banhar o olho com sangue de pomba, pombo-bravo ou andorinha (SOUSA, 2005, p.17). Segundo Celso, a capacidade que essas aves têm de se recuperar rapidamente de um derrame ocular está contida em seu sangue que passa, por contato, para o sangue humano, possibilitando a sua recuperação (CELSUS e SPENCER, 1935). Ela propunha, tal como Celso, a utilização de sangue, carne e couro de certos animais para adquirir as virtudes do próprio animal, curando, portanto, certas doenças ou indisposições.
Em se tratando da arte médica desenvolvida por Hildegarda de Bingen, pode-se dizer que ela atuou entre ciência e arte, ciência e misticismo, objetividade e subjetividade, magia e ciência. Por um lado, é notório que muitos de seus conhecimentos tenham tido origem na medicina greco-romana, árabe e judaica, e que ela tenha lido tudo o que fosse possível. Numerosas práticas de cura desenvolvidas por Hildegarda também eram praticadas por Galeno e por Celso. Hildegarda considerava o ser humano como um sistema complexo e interligado entre corpo, mente e espírito. Como tal, sua medicina era parte de um sistema de cura que deveria atuar nesses três níveis. Consequentemente, para que pudesse ser eficaz nesses três aspectos da natureza humana, sua medicina envolvia uma prática ao mesmo tempo mágica, religiosa e científica. Por outro lado, ela soube separar ciência de religião, porque muitas vezes afirmou que um doente não se cura apenas com orações.
As influências de Hildegarda foram variadas, como se disse antes. Embora não haja nenhuma referência a obras ou autores em seus escritos, é possível perceber que ela leu Celso (25 a.C.- 50); Dioscórides Pedanios (40-90); Plínio, o Velho (23-79); Galeno (130-210) e Isidoro de Sevilha (560-636). Esse último dedicou à medicina o quarto livro de suas Etimologias, sendo essa obra a primeira das enciclopédias medievais. Foi Isidoro quem declarou que, para tratar um doente, dever-se-ia, primeiramente, restaurar sua energia vital, porque através dessa alcançava-se a cura e a manutenção da saúde. A concepção da restauração da energia vital como prática da manutenção da saúde perdurou por toda a Idade Média, e teve origem com a teoria dos humores,
sistematizada por Galeno no século II e difundida no século IV por Oribásio (320-400) (LE GOFF e SCHIMITT, 2017, pp. 173-189). Hildegarda também pregava essa visão de saúde integrada, que poderia ser restaurada pela elevação da energia vital do ser humano, obtida através de uma alimentação equilibrada, exercícios físicos, preces e emprego de certos recursos da natureza, como o uso de pedras e ervas. Na visão de Hildegarda, a humanidade somente seria feliz se vivesse em constante respeito mútuo, em equilíbrio com a natureza e em reverência a Deus.
Deve-se principalmente à escola pitagórica a correspondência entre as características dos elementos naturais quente, frio, úmido e seca, e os quatro humores do ser humano –sanguíneo, fleumático, melancólico e colérico (REZENDE, 2009). Os humores e as características dos elementos naturais estavam ainda associados aos quatro elementos – terra, ar, fogo e água – e às quatro estações do ano – inverno, primavera, verão e outono. Era de fundamental importância saber qual dos quatro humores prevalecia no corpo humano, pois quando os humores estavam desequilibrados, apareciam doenças (RICHET, 1910). Por isso, Hildegarda sempre alertava para a característica de determinado alimento, que poderia provocar abundância ou falta de determinado humor. Desses quatro humores predominava sempre um, que determinava o temperamento do indivíduo: sanguíneo, melancólico, colérico ou fleumático. Cada um dos temperamentos era assinalado a um elemento: o sanguíneo ao ar, o fleumático à água, o melancólico à terra e o colérico ao fogo. Ademais, tinham os elementos qualidades precisamente definidas: o ar é úmido e quente, a água úmida e fria, a terra seca e fria e o fogo seco e quente. As doenças eram, assim, definidas conforme essas quatro características. O tratamento de uma doença dava-se por meio de plantas medicinais que continham as qualidades opostas (FERLT, 2013).
4. Texto latino e respectiva tradução dos Capítulos V e XIII (Livro I), e Capítulo I
(Livro IV) de Physic